05 setembro 2012

A Temperatura - 3ª parte

A congelação

A congelação e a hipotermia estão intimamente relacionados. Uma das reacções mais imediatas do corpo perante um resfriamento grave é a redução da circulação sanguínea nas extremidades para conservar o calor do centro do corpo. Diminui a quantidade de sangue que chega aos dedos dos pés e das mãos e a outras extremidades, abrindo-se desta forma, caminho para a congelação. Os problemas de congelação aparecem quando as temperaturas são anormalmente baixas, quando alguém se molha, ou se vê obrigado a bivacar estando muito mau tempo.





Os danos da congelação ocorrem por consequência dos tecidos que gelam e que geralmente afecta as mãos, os pés, a cara e poucas vezes outras partes do corpo. Pode-se evitar tendo suficiente cuidado. Além de mantermos o calor geral do corpo, é preciso prestar atenção ao estado das mãos e dos pés. Deve-se evitar ter as roupas muito ajustadas  e os cordões das botas muito apertados, porque entorpece a circulação sanguínea. Outro factor que pode contribuir é levar as correias dos ombros da mochila muito ajustados. Se desaparecer rapidamente a dor provocada pelo frio nas mãos e nos pés, será necessário ocuparmo-nos deles imediatamente. O melhor que se pode fazer é aquecê-los, ainda que seja necessário tirar as polainas, as botas e as meias. Se desprezarmos estes avisos, pode ter início um longo e dolorosos processo de congelação, com a probabilidade de morte dos tecidos, e seja necessário amputar algum membro.





É melhor prevenir do que curar. Se realmente tem início a congelação, a parte afectada fica branca e sentir-se-á como uma pedra fria. Se continuar a congelação, esta parte ficará insensível e dará a impressão de estar mais quente. Esta impressão de calor é uma ilusão e indica um perigoso grau de congelação, em que já é inevitável que se deteriorem os tecidos. Se houver alguma possibilidade, deve-se prestar auxilio médico à vitima. Se forem os pés a ficarem congelados, deve-se transportar a vítima numa maca. Não se pode esperar que uma pessoa que tenha os pés congelados, consiga caminhar. Ainda que seja possível andar com os pés congelados, é impossível fazê-lo quando voltam a aquecer porque a dor é muito intensa. Em nenhuma circunstância se deve esfregar a parte afectada com neve, porque o único que se conseguirá será agravar os danos. A parte gelada deve descongelar toda de uma só vez,  e de preferência com supervisão médica. Deve-se aquecer água, até que fique morna, a uns 40ºC. Se não tivermos um termómetro, experimentamos a água submergindo nesta o nosso cotovelo. Deve produzir a sensação de estar agradavelmente temperada. Mantem-se a água a esta temperatura e introduz-se nesta a parte afectada durante 20 a 30 minutos. Não devemos ceder à sensação de massagear, rebentar as bolhas que se possam ter produzido ou mover o membro afectado. Tão rápido quanto seja possível, deve-se transportar a vítima a um hospital, procurando ter a parte afectada bem protegida.





Após esta breve introdução sobre as congelações, vamos abordar o tema um pouco mais aprofundado, de forma que se consiga transmitir da melhor maneira, o que é, como prevenir e como tratar de um congelamento.

Conceito de congelação:

São  lesões frequentemente localizadas em pés, mãos e cara (nariz e orelhas), devido à exposição a temperaturas muito abaixo dos 0ºC e geralmente abaixo dos -10ºC. As congelações na montanha costumam estar associadas ao resfriamento dos tecidos corporais com hipoxia e desidratação.






Epidemiologia:

No nosso meio, e tendo em conta somente as congelações produzidas durante a prática desportiva, cerca de 52% correspondem ao alpinismo, cerca de 44% ao esqui e apenas 4% ao voo livre (asa delta e parapente). Aproximadamente 87% dos congelados são do sexo masculino e as idades médias rondam os 27 anos.

Ao resfriarem os tecidos, a água das células transforma-se em cristais de gelo e ao perder o seu estado líquido, a célula desidrata e produz-se a morte celular. Os cristais são cortantes e podem lesar os tecidos. Por outro lado, os vasos sanguíneos estreitam-se (vasoconstrição), o que provoca a formação de trombos no sangue e que as plaquetas se unam, o que produz a libertação de substâncias produtoras de inflamações (prostaglandina F2, tromboxano A2 e radicais oxidantes).

A vasoconstrição também é responsável pelo facto de chegar menos sangue aos tecidos, e portanto, menos oxigénio (hipoxia), o que faz com que as células dos próprios vasos sanguíneos (endotélio) também fiquem afectadas, agravando a trombose vascular e tornando o sangue mais viscoso. Esta má circulação provoca  no sangue uma maior acidez, a qual também  é prejudicial para os tecidos.







Sintomas e sinais

O primeiro sinal de alarme é a sensação de entorpecimento e desajeitamento das extremidades, com perda de sensibilidade. Depois do reaquecimento,  pode originar dor, que pode persistir durante dias ou semanas. Além disso, também pode permanecer uma perda de sensibilidade, maior sensibilidade ao frio e hiperidrose (sudorese  mais abundante), que pode persistir durante anos.





Na exploração inicial, muitas lesões são parecidas, mas depois do reaquecimento, as congelações classificam-se  nos seguintes graus:

. Superficiais

  - Primeiro grau: a pele encontra-se avermelhada e inchada, mas sem bolhas.





  - Segundo grau: a pele apresenta bolhas claras ou leitosas, não sangrantes que podem aparecer em 24 horas contendo o medidor inflamatório tromboxano A2. Esta situação diminui a sensibilidade.






. Profundas

  - Terceiro grau: a pele apresenta cianose (pele azulada) frequente, com bolhas hemorrágicas que se transformam em escaras negras num período de duas semanas.





  - Quarto grau: ausência de flictenas (bolhas), tecido frio e morto (necrose), perda de tecido, e pulso fraco.





A necessidade de amputação está mais correlacionada com a duração da exposição ao frio, do que com a temperatura. Se a circulação está parada durante mais de 6 horas, a lesão dos tecidos será permanente, se estiver durante mais de 24 horas, pode perder a extremidade afectada. Além da exposição prolongada, a lesão dos tecidos será pior se o resfriamento e o reaquecimento forem  lentos.




Fisiopatologia





Factores predisponentes

. Equipamento inadequado.

. Álcool.

. Tabaco.

. Fadiga.

. Congelações prévias.

. Feridas infectadas.

. Diabetes.


Factores protectores

. Equipamento adequado.

. Aclimatação.

. Boa condição física.

. Boa hidratação.


Factores prognósticos

Na exploração inicial, as conclusões relacionadas com o melhor prognóstico são:

. Sensação de ter agulhas afiadas a entrar na carne.

. Pele elástica à pressão.

. Cor normal.

. Bolhas grandes com líquido claro.


As conclusões relacionadas com pior prognóstico são:

. Pequenas vesículas escuras.

. Líquido hemorrágico.

. Cianose (pele azulada).

. Pele que não é elástica à pressão e que parece ferida.

Não existem técnicas diagnósticas que ajudem a conhecer com certezas o estado de vascularização durante os primeiros 3-5 dias posteriores ao reaquecimento. Algumas explorações radiológicas com contraste, realizadas nos departamentos de medicina  nuclear (escintigrafia com tecnécio 99) encontram uma boa correlação entre a vascularização após 48 horas da lesão com o tecido que ficará viável na lesão definitiva. A exploração radiológica com contraste das artérias (arteriografia) não mostra bem a microcirculação. Após 2-3 semanas, o eco-doppler (exploração com ultrassons), a arteriografia e a escintigrafia podem ajudar a demarcar as áreas viáveis e não viáveis.


Prevenção

À semelhança da hipotermia, nestes casos,  também o melhor tratamento é a prevenção. Os factores que favorecem a congelação, e que portanto se devem evitar, são: a humidade, o vento, a altitude, a fadiga, o tabaco e o álcool.

Os elementos que se devem levar em conta são o equipamento, o equilíbrio nutricional, a hidratação e a aclimatação à altitude. Convém saber que as manápulas agasalham mais do que as luvas e que a roupa apertada impede a circulação sanguínea.

Para aquecer as mãos, podem-se efectuar movimentos circulares com os braços bem esticados e com os dedos estendidos, fazendo grandes círculos  com a finalidade de que a força centrífuga faça chegar mais sangue quente aos dedos.

Para aquecer os pés, pode-se saltar ou correr no mesmo lugar.

As partículas de hidróxido de alumínio que se utilizam como antitranspirantes, podem ser utilizadas para manter os pés secos.






Tratamento

. Enfrentar a hipotermia.  A hipotermia deve ser tratada sempre, antes do que qualquer parte congelada.

. Tomar analgésicos antes de fazer qualquer outra coisa. A congelação é uma afecção extremamente dolorosa. Inclusivé enquanto está a ser tratada, a congelação provavelmente castigará a sua vítima. Tomar analgésicos é uma das formas de aliviar, pelo menos temporariamente, a dor. 

. Identificar os sinais de congelamento. As áreas congeladas normalmente estão brilhantes e com uma desagradável cor branca. A sensação nas mãos é muito escassa ou inexistente e é provável que tenha alguma dor. Também se verifica que a pele não branqueia quando se faz pressão sobre ela. Os primeiros sintomas de congelamento são as picadelas e a sensação de ser picado com agulhas, acompanhado de entorpecimento.

. Encontrar um lugar abrigado para começar a tratar o congelamento.  Se existir a possibilidade de a área afectada voltar a congelar, não se deve descongelar. O facto de congelar, aquecer e voltar a congelar alguma parte do corpo, acarretará um dano permanente nas partes afectadas. Deve-se aquecer o corpo inteiro, envolvendo a vítima e as partes do corpo afectadas devem ser protegidas com mantas.






. Retirar qualquer roupa ou objecto molhados e trocar por roupas secas e confortáveis.  Se existe ajuda médica profissional disponível, deve-se envolver as áreas afectadas e manter a vítima aquecida. Não se deve esfregar nenhuma parte afectada, pois isso pode produzir um dano adicional. Esperar pela ajuda.

. Submergir  as áreas afectadas em água morna.  (37,7 a 40,50ºC; 100 a 105 Fº). Nunca usar água quente acima dos 42,2ºC ou 108 Fº sob risco de danificar ainda mais os tecidos. Alternativamente, se não houver água disponível, deve-se pressionar a área afectada com algo quente, como as mãos de outra pessoa, a axila ou entre as pernas, por períodos de 30 minutos. Este processo deve-se manter até que a pele esteja suave e a sensibilidade retorne. Não se deve utilizar calor seco como o fogo ou aquecedores eléctricos. Deve-se averiguar a temperatura da água, pois como as áreas afectadas não têm sensibilidade não se apercebe se está muito quente e poderá provocar queimaduras por calor o que piora a lesão.

. Tomar algo para reduzir a dor, como aspirina ou ibuprofeno.  À medida que as áreas afectadas vão aquecendo, aparecem fortes dores e a sensação de queimaduras sobre a pele, a pele mudará de cor e é possível que se formem bolhas. Não se devem furar as bolhas.





. Cobrir as áreas afectadas com gaze esterilizada e mantê-las tão imóveis quanto seja possível: Deve-se envolver cada dedo individualmente, usando bolas de algodão ou outro espaçador, para evitar que os dedos se toquem.

. Procurar ajuda especializada.

Seguidamente falaremos do tratamento efectuado pelas equipas de resgate especializadas.


O tratamento curativo baseia-se em:

. Reaquecer para deter a formação de cristais de gelo nos tecidos.

. Reverter a vasoconstrição para melhorar a circulação sanguínea e deste modo limitar o défice  local de oxigénio nos tecidos.

. Administrar fármacos para bloquear os mediadores químicos da inflamação.







Para o tratamento, recomendam-se as seguintes medidas:

. Avaliar se existem também hipotermia e outras lesões ou problemas.

. Se estiver com as roupas húmidas, tentar vestir roupas secas.

. Providenciar o transporte para o hospital.

. Apenas tentar aquecer se o tempo para chegar ao hospital for superior a duas horas e se possa garantir que não voltará a congelar, pois essa situação pode provocar uma lesão maior nos tecidos do que o facto de prolongar um pouco mais a congelação.

. Pensar que se retirar as botas, talvez o edema (inchaço) não permita voltar a calça-las.






. Não fazer massagem com neve nem com as mãos ou as luvas, para não originar microlesões.

. Não aquecer brutalmente com uma chama ou calor seco, pois podem-se provocar lesões cutâneas.

. Reidratar com bebidas quentes e açucaradas.

. Não fumar nem beber álcool.

. Aquecer rapidamente com água a 40-42ºC durante 15 a 30 minutos, ou até que a pele adquira a sua cor rosada e textura elástica.

. Desbridar (procedimento cirúrgico que corresponde ao acto de seccionar os tecidos para ampliar uma ferida, ressecando tecidos inviáveis, necrosados) as bolhas com líquido claro, pois contém o mediador inflamatório tromboxano A2 que pode agravar a lesão e de seguida aplicar uma pomada de aloe vera que tenha uma concentração mínima de 70% e não contenha álcool ou perfume, pois minimiza a síntese de tromboxano A2. Proteger com um curativo e repetir a cada 6 horas. Aplicar também aloe vera nas bolhas hemorrágicas sem as desbridar, pois aumentaria o risco de infecção.

. Elevar a extremidade.

. Administrar ibuprofeno em doses de 400 a 600 mg a cada 12 horas para minimizar a lesão inflamatória. É preferível em vez do ácido acetilsalicílico, pois este último também inibe a síntese de prostaglandinas necessárias para a integridade e normal funcionamento celular.

. Administrar toxoide antitetânico e imunoglobulina antitetânica, se passaram 10 anos desde a última vacinação.

. Administrar penicilina intravenosa 500.000 UI a cada 6 horas, durante 72 horas, para evitar a infecção da pele macerada.

. Controlar a dor com mórficos se for necessário.

. Aplicar banhos diários de água a 40ºC com hexaclorofeno, durante 30-60 minutos.

. Proibir o tabaco e o álcool.

. Iniciar reabilitação enquanto o edema (inchaço) seja resolvido.

. Se a circulação estiver comprometida, efectuam-se escaratomias ou fasciotomias.

. A decisão de fazer amputações não se toma até aos 22-45 dias, quando a demarcação entre tecido viável e não viável já é evidente.







. Alimentação hiperproteica hipercalórica.

. Movimentação precoce da parte afectada.

. Proteger com algodão os espaços interdigitais, para prevenir a maceração dos tecidos.
Existe uma série de fármacos em fase experimental, dos quais ainda não se dispõe da evidência inequivocamente suficiente da sua utilidade: heparina, cumarina, corticoesteróides, dextrano de baixo peso molecular, vitamina C, estreptokinasa, urokinasa, oxigénio hiperbárico, activador tisular do plasminogénio, análogos da prostaglandina El, nifedipina, pentoxifilina, superóxido dismutasa, reserpina intraarterial, simpatectomia.






Evolução

A evolução das congelações costuma ser a seguinte:

. Congelações superficiais de primeiro grau: cicatrização em 3-4 dias sem sequelas.

. Congelações superficiais de segundo grau: cicatrização em 10-15 dias com poucas sequelas.

. Congelações profundas de terceiro grau: cicatrização em 21 dias com sequelas.

. Congelações profundas de quarto grau: amputação às 2-3 semanas.





Com esta 3ª parte do tema da temperatura, terminamos a matéria relativa ao assunto. O nosso objectivo principal, é no contexto de  sensibilizar os praticantes de montanhismo a avaliar os sinais e sintomas que o nosso corpo nos proporciona, para desta forma o podermos proteger. Quando o nosso corpo nos dá um alerta não o devemos desprezar, ele pede-nos ajuda e a nossa obrigação é proporcionar-lhe essa ajuda, pois desta forma estamo-nos a auxiliar a nós próprios. O nosso corpo é o nosso melhor amigo em situações extremas, portanto tratem bem dele e escutem o que eles vos diz.
Não esqueçam nunca, que a melhor prevenção é o melhor tratamento.

Boas caminhadas

1 comentário:

  1. Pah excelente artigo com linguagem clara, objectiva e explicita. keep going vemos nos no Liffey

    ResponderEliminar

comentários