O abdome é uma região anatomicamente desprotegida com grande exposição
a múltiplas possibilidades de lesões.
O abdome é a região do corpo onde é mais difícil fazer o diagnóstico
correcto de lesões traumáticas que necessitem de correcção cirúrgica. Quando
não reconhecido, o trauma abdominal é uma das principais causas de morte nos
sinistrados traumatizados. Devido à dificuldade do diagnóstico correcto no
trauma abdominal, a melhor conduta a adoptar é providenciar o transporte do sinistrado
com suspeita de lesão abdominal, para um centro hospitalar urgentemente.
No pré-hospitalar também pode ser difícil de determinar a extensão do
trauma abdominal. A morte pode ocorrer por perda intensa de sangue tanto em
decorrência de ferimentos penetrantes quanto de trauma fechado.
Lesões não diagnosticadas de cólon, delgado, estômago ou pâncreas
podem levar a complicações tardias e inclusive, à morte. No entanto, o trauma
fechado muitas vezes tem maior risco de vida, por ser de diagnóstico mais difícil
do que os ferimentos penetrantes. O socorrista/montanheiro não se deve
preocupar muito em determinar a extensão exacta do trauma abdominal, mas sim em
tratar as lesões detectadas. A ausência de sinais e sintomas locais não afasta
a possibilidade de trauma abdominal. Um alto índice de suspeita baseado no
mecanismo de trauma deve alertar o socorrista para a possibilidade de lesões
com hemorragia intra-abdominal.
Anatomia
O abdome contém os principais órgãos do sistema digestivo, endócrino,
urogenital e os principais vasos do sistema circulatório. A cavidade abdominal
está localizada abaixo do diafragma, os seus limites são a parede anterior do
abdome, os ossos da bacia, a coluna vertebral, os músculos do abdome e dos flancos. A cavidade
abdominal é dividida em dois espaços. O espaço retroperitoneal (espaço virtual
atrás da “verdadeira” cavidade abdominal) que contém os rins, os ureteres, a
bexiga, os órgãos do sistema reprodutor, a cava inferior, a aorta abdominal, o
pâncreas e parte do duodeno, cólon e recto.
O espaço peritoneal (a “verdadeira” cavidade abdominal) que contém, o
intestino grosso e o delgado, o baço, o fígado, o estômago, a vesicula biliar e
os órgãos do sistema reprodutor feminino.
A parte superior do abdome é protegida anteriormente pelas costelas e
posteriormente pela coluna vertebral. Esta região contém o fígado, a vesicula
biliar, o baço, o estômago e o diafragma, que podem ser lesados em decorrência
de fractura de costela ou lesão do esterno. Os órgãos mais comumente lesados quando
existem fracturas de costelas são o baço e o fígado.
A parte inferior do abdome é protegida em todos os lados pela pelve.
Esta área contém o recto, a maior parte do intestino (especialmente quando se
fica de pé), a bexiga, os ureteres e os órgãos do sistema reprodutor feminino.
A hemorragia retroperitoneal associada a fractura de bacia é um problema grave
relacionado com esta parte da cavidade abdominal. O abdome acima da pelve e
abaixo das costelas tem alguma protecção, não muito firme, representada pelos
músculos abdominais anterior e lateralmente. As vertebras lombares, juntamente
com a forte musculatura paravertebral e os músculos psoas, protegem o abdómen.
Para fins de avaliação do sinistrado, a superfície abdominal é
dividida em quatro quadrantes. Eles são formados desenhando duas linhas
imaginárias – uma vai da ponta do apêndice xifóide até à sínfise púbica e a
outra é perpendicular a esta linha mediana, na altura da cicatriz umbical.
O conhecimento das referências anatómicas é importante, devido à
grande correlação entre o órgão acometido e o local da dor. O quadrante
superior direito (QSD) contém o fígado e a vesicula biliar, o quadrante
superior esquerdo (QSE) contém o baço e o estômago, o quadrante inferior
direito (QID) e o quadrante inferior esquerdo (QIE) contém basicamente o
intestino. Existe parte do trato intestinal em cada um dos quadrantes. A bexiga
fica na linha média, entre os quadrantes inferiores.
O aumento da pressão intra-abdominal, produzido pela compressão contra
a coluna do volante de um carro ou força similar, pode romper o diafragma que é
o teto da cavidade abdominal.
O mecanismo é semelhante ao que acontece quando se comprime um saco de
papel. A ruptura do diafragma à esquerda
é a que tem maior probabilidade de causar problemas no atendimento inicial
(pré-hospitalar) do sinistrado. A passagem de conteúdo intra-abdominal para o
tórax pode comprometer a expansibilidade pulmonar.
A divisão dos órgãos abdominais em ocos, sólidos e vasculares ajuda a
entender as bases da sua fisiologia. Quando lesados, os órgãos sólidos e
vasculares (fígado, baço, aorta e cava) sangram, enquanto os órgãos ocos
(intestino, vesicula biliar e bexiga) basicamente derramam o seu conteúdo
dentro da cavidade peritoneal ou no espaço retroperitoneal. Este derramamento
leva a peritonite (inflamação do peritónio que reveste a cavidade abdominal),
sépsis (infecção generalizada) e sangramento intra-abdominal. O tratamento
pré-hospitalar consiste em iniciar rapidamente o tratamento do choque e
controlar a hemorragia.
Fisiopatologia
As lesões abdominais podem ser causadas por ferimentos abertos ou
penetrantes e por trauma fechado. Os ferimentos penetrantes, como os causados
por arma de fogo ou arma branca, são mais evidentes que os decorrentes de
trauma fechado.
Pode ocorrer lesão de múltiplos
órgãos nos ferimentos penetrantes, embora isso seja menos provável nos
ferimentos por arma branca do que nos por arma de fogo. A mentalização da
trajectória do projéctil, como uma bala ou a lâmina de uma faca, pode ajudar a
identificar os órgãos possivelmente lesados.
O diafragma vai até ao quarto quadrante intercostal anteriormente, o
sexto espaço intercostal lateralmente e o oitavo espaço intercostal
posteriormente, durante a expiração forçada. Sinistrados com ferimentos
penetrantes de tórax abaixo desta linha podem ter também lesão abdominal.
Ferimentos penetrantes nos flancos e nos glúteos podem acometer órgãos da
cavidade abdominal. Estes ferimentos penetrantes podem provocar sangramento de
grandes vasos ou de órgãos sólidos e perfurantes de intestino, que é o órgão
mais frequentemente lesado nos ferimentos penetrantes.
O trauma fechado de órgãos intra-abdominais, geralmente resulta de
compressão ou de forças de cisalhamento. Na compressão, os órgãos abdominais
são comprimidos entre objectos sólidos, como por exemplo, entre o volante de
uma viatura e a coluna vertebral ou uma violenta pancada. Forças de
cisalhamento rompem órgãos sólidos ou vasos sanguíneos na cavidade abdominal,
devido à tracção exercida sobre os ligamentos de fixação e os vasos. O fígado e
o baço podem romper-se e sangrar com facilidade, e a perda de sangue pode ser
rápida. Fracturas de bacia podem levar a perda de grande volume de sangue,
devido ao rompimento de grandes vasos que ficam junto à pelve. Lesões de bexiga
e uretra são também complicações das fracturas pélvicas.
O peritónio é sensível à distensão. Esta distensão pode ser decorrente
de inflamação ou de sangramento pelo trauma. Nos estágios avançados da
gestação, essa irritação pode passar despercebida por causa da distensão que já
foi ocorrendo gradualmente.
A perda de sangue para a cavidade abdominal, qualquer que seja a fonte
de sangramento, pode contribuir ou ser a causa primária do choque. O
derramamento na cavidade peritoneal de ácidos, enzimas e bactérias,
provenientes do trato gastrointestinal, resulta em mais lesão orgânica e
peritonite.
Avaliação
O índice de suspeita para lesão abdominal deve ser baseado no
mecanismo de trauma e no que se vê no exame físico, tais como equimoses ou
outros sinais de pancada. Deve-se suspeitar de sangramento intra-abdominal
quando o sinistrado apresentar escoriações externas ou distensão. Apesar de
estes sinais e sintomas serem sugestivos de sangramento intra-abdominal, com
frequência estão ausentes em sinistrados com hemorragia considerável. O
socorrista/montanheiro deve estar alerta para sinais mais subtis, como por
exemplo, ansiedade, agitação e dispneia.
O indicador mais confiável de sangramento intra-abdominal é a presença
de choque de origem não explicada. Esta é a razão pela qual é imperativo
reconhecer os sinais precoces. O exame do abdome no doente consciente pode ser
fiável ou não. Fracturas de bacia ou das últimas costelas podem provocar dor,
sem que haja necessariamente lesão intra-abdominal. Os sintomas podem ser
mascarados por álcool ou outras drogas. As informações das crianças normalmente
não são confiáveis e os idosos podem ter resposta alterada devido à dor. Se o
sinistrado tiver dor de outras lesões que desvie a atenção, como fractura de
extremidades ou de coluna, pode ser que não refira dor à palpação abdominal.
Por sua vez, o sangue fresco no
abdome não é muito irritante do peritónio e, na maioria dos casos, não causa
sinais de peritonite. A cavidade abdominal do adulto pode conter até 1,5 litros
de líquido sem apresentar sinais de distensão. Por isso pode haver grande
quantidade de sangue do abdome e o exame físico do doente ser totalmente
normal. No doente inconsciente ou com lesão cerebral traumática, é difícil
avaliar adequadamente qualquer resposta verbal. Por isso, o socorrista deve
valer-se de impressões imediatas provenientes de uma variedade de outras
fontes, incluindo a biomecânica, a informação de testemunhas e/ou evidências
físicas. Considerando tudo isto, a avaliação do trauma abdominal pode ser muito
difícil. Alguns indicadores seguros para suspeitar da presença de lesão
abdominal podem ser:
. Mecanismo da lesão
. Sinais externos de trauma
. Choque de causa não explicada
. Choque mais grave do que o explicado por outras lesões
. Presença de rigidez abdominal, defesa ou distensão (raramente
encontrada)
A avaliação do doente com suspeita de trauma abdominal deve incluir:
. Inspecção . O abdome deve ser exposto e examinado, procurando-se
distensão, contusões, abrasões, ferimentos penetrantes, evisceração, objectos
encravados e/ou sangramento evidente. Todos estes sinais podem indicar lesões
subjacentes.
. Palpação – A palpação do abd0me pode mostrar defeitos na parede
abdominal ou provocar dor na área palpada. Defesa voluntária ou involuntária,
rigidez e/ou descompressão brusca e dolorosa podem indicar laceração,
inflamação ou hemorragia. Contudo o socorrista/montanheiro deve evitar a
palpação profunda quando há evidência de lesão, já que a palpação pode aumentar
a hemorragia existente e piorar outras lesões. A instabilidade pélvica é
avaliada pressionando-se, cuidadosamente o anel pélvico.
A auscultação dos ruídos hidroaéreos não é útil na avaliação
pré-hospitalar. O socorrista/montanheiro não deve perder tempo tentando
verificar se estes estão presentes ou ausentes, já que este sinal não muda o
tratamento pré-hospitalar do sinistrado.
Todas estas formas de avaliação são necessárias para determinar a
presença de lesões com potencial de risco de vida.
Sinais e sintomas:
. Taquicardia
. hipotensão
. Dor intensa
. Vítima imóvel completamente, com as pernas recolhidas, numa
tentativa de aliviar a dor que sente
. Ferida visível em lesão abdominal aberta
. Contusões ou equimoses na base do tronco
. Espasmos musculares e rigidez dos músculos abdominais
. Náuseas e vómitos.
Complicações:
. Hemorragia interna
. Perfuração do tubo digestivo ou da bexiga
. saída de vísceras
. Fracturas dos ossos da bacia
. Lesões no baço e rins
. Ruptura do diafragma, que pode originar a invasão dos órgãos
abdominais na caixa torácica.
Tratamento
A conduta no trauma abdominal consiste apenas em tratar o que foi
identificado durante a avaliação, qualquer que seja o órgão específico lesado.
Deve incluir:
. Avaliação rápida do cenário
do sinistro. Depois de se certificar de que o cenário é seguro, tratar as
lesões que impliquem risco de vida identificadas na avaliação inicial.
. Actuar com calma e manter uma atitude serena e segura.
. Iniciar o tratamento do choque, incluindo o fornecimento de altas
concentrações de oxigénio.
. Alertar as equipas de resgate
. Aplicar a calça pneumática antichoque para reduzir a hemorragia
intraperitoneal ou retroperitoneal suspeitada em sinistrados com choque
descompensado e, se indicado, tratar do choque profundo. O maior benefício do
uso deste tipo de calças em sinistrados traumatizados é a redução da hemorragia intra-abdominal.
Existem evidências de que o uso destas calças pode ser eficaz no controlo da
hemorragia associada a fractura pélvica em sinistrados com choque
descompensado. (equipas de resgate)
. Administrar oxigénio: 10 litros/minuto (equipas de resgate)
. Não dar nada a comer ou a beber ao sinistrado.
. Cobrir o sinistrado com um lençol isotérmico
. Cobrir feridas existentes com pensos
. Não tentar a remoção de corpos estranhos encravados
. Imobilização e transporte
rápido da vítima para o centro hospitalar mais próximo.
. Iniciar a reposição
intravenosa de cristaloides a caminho do hospital (equipas de resgate)
Posicionamento:
. Sinistrado consciente, sem suspeita de TVM: posição de pernas
flectidas ou posição de semi-sentado com pernas flectidas
. Sinistrado inconsciente, ou consciente com suspeita de TVM: posição
supino em maca de vácuo ou plano rígido.
. No caso de evisceração não tocar nem tentar reintroduzir o conteúdo
intestinal. (assunto mais aprofundado a seguir).
. Existindo suspeita de fractura dos ossos da bacia, manter a
imobilidade absoluta.
A intervenção cirúrgica continua sendo uma necessidade fundamental,
não se devendo perder tempo na tentativa de determinar os detalhes exactos da
lesão. Em muitos casos, a identificação da lesão orgânica específica só é
possível depois da exploração cirúrgica do abdome.
O transporte do sinistrado com lesão intra-abdominal para o hospital
que não tenha centro cirúrgico ou equipa cirúrgica disponível está em desacordo
com o objectivo do transporte rápido. Deve ser escolhido como destino o
hospital que possa fornecer tratamento cirúrgico rápido.
Além dos aspectos gerais do atendimento, comuns a todas as lesões
abdominais, algumas situações específicas merecem considerações especiais.
Objectos encravados
Visto que a remoção de um objecto encravado pode causar mais lesões
graves e a ponta distal do objecto pode estar a tamponar sangramento, no
pré-hospitalar é contra-indicada a remoção de objectos encravados.
Um objecto encravado no abdome
nunca deve ser mobilizado ou retirado. No hospital estes objectos não são
retirados antes que a sua forma e localização tenham sido identificados
radiologicamente e haja a possibilidade de reposição sanguínea e uma equipa
cirúrgica presente e pronta a actuar. O socorrista/montanheiro deve estabilizar
o objecto encravado e imobiliza-lo, manual ou mecanicamente, para evitar que
ele se mexa mais, no local ou durante o transporte. Se houver sangramento à
volta do objecto, deve ser feita pressão directa à volta do ferimento, com a
palma da mão em torno do objecto. O apoio psicológico ao sinistrado é
fundamental, especialmente se o sinistrado estiver a ver o objecto encravado.
Nestes casos, o abdome não deve ser palpado, pois a palpação pode
provocar mais laceração ou afundar mais a ponta do objecto. É desnecessário
continuar o exame, já que a presença do objecto obriga a exploração cirúrgica.
Evisceração
Ocorre evisceração quando um
segmento do intestino ou outro órgão abdominal passa através de uma ferida,
ficando fora da cavidade abdominal. O tecido mais comumente observado é o
epiplon, que fica na frente do intestino. A protecção da porção eviscerada do
intestino ou de outro órgão, para que não sofra mais danos, representa um
problema especial. Não se deve tentar colocar o órgão de volta na cavidade
abdominal. Deve-se deixar as vísceras na superfície do abdómen ou para fora,
como estão. A maior parte do conteúdo abdominal necessita de ambiente húmido.
Se o intestino ou algum dos outros órgãos abdominais ficar seco, pode ocorrer
morte celular. Por isso, o conteúdo abdominal eviscerado deve ser coberto com
compressas esterilizadas e humedecidas com solução salina esterilizada (pode
ser utilizado soro fisiológico). Estas compressas devem ser periodicamente
humedecidas com solução salina esterilizada para evitar que fiquem secas. Por
cima do curativo humedecido pode-se fazer um grande curativo seco, para manter
o sinistrado aquecido.
Para efectuar o socorro neste
tipo de trauma, assim como nos restantes, é necessária possuir muita presença
de espírito, lucidez e sangue frio. Lógicamente, e como nunca é demais lembrar,
se não sabe não mexa e o explicado nestes artigos não é suficiente para prestar
um socorro adequado, pelo que aconselhamos a frequência de um curso de
primeiros socorros, de forma a ficarem “minimamente” aptos para prestar socorro
em caso de necessidade.
Boas caminhadas e evitem o
acidente, a precaução é sempre o melhor socorro.